11/01/2012
FOTO: MAÍRA GAMARRA
Por Luzineide Dourado Carvalho
Água e território no semiárido brasileiro é uma relação de territorialidade e de contradições. A maneira interativa e de convivência com os regimes de signos, códigos e alternâncias da natureza marca a relação do sertanejo com as condições de viver e sobreviver em um vasto território configurado pela irregularidade de chuvas. O sertanejo aprende desde cedo a lidar com esse ciclo natural, e nele viver “entre o excesso e a escassez da água a produção de processos subjetivos” (DE MARCO, 2003, p. 10)1. Ou seja, viver a escassez ou o excesso é a condição da existência no sertão semiárido e nessa temporalidade organizar a vida neste ambiente. Entretanto, a presença da seca gerou a conotação de natureza hostil. Comunicadas e representadas de forma estereotipada, negativa e pejorativa de dizer e de apresentar o território, a natureza e as gentes do sertão semiárido.
Compreendida como ‘catástrofe’, a seca tem gerado retóricas de fatalidade climática, cujas intervenções do Estado reordenaram o território Semiárido ao longo do século XX por ações de correção hídrica denominada de ‘política de combate à seca’. A transição para o século XXI surgem novos atores sociais para a produção e organização desse território, com agenciamentos e arranjos produtivos da nova fase de intervenção estatal em consonância com a economia globalizada.
O Semiárido Brasileiro do século XXI ainda é demarcado pela forte exclusão social, mas, por outro lado, por um crescente posicionamento crítico e propositivo da sociedade civil. A experiência das lutas contra a pobreza e as injustiças sociais promove desde final dos anos de 1980 uma pressão para a democratização e o controle social dos programas de desenvolvimento por meio de importantes redes, tais como a Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA).
A Reforma Hídrica promovida pela ASA parte-se do pressuposto ético que a água é uma necessidade básica de todos os seres vivos: “É um direito fundamental da pessoa humana” (ASABRASIL, 2005)2. A ASA considera que somente através de um programa de aproveitamento racional das águas disponíveis possa oferecer segurança hídrica à população do Semiárido. Ao longo da história política do Brasil/Nordeste, a água foi usada como símbolo da manipulação eleitoreira. Sua oferta diretamente associado a um modelo de desenvolvimento excludente e desvinculado de desenvolvimento rural integrado e sustentável e das reais necessidades da grande parcela de sua população, caracterizada por agricultores familiares. A opção pelas águas das chuvas, pela ASA, como fonte disponível e acessível, parte de uma contextualização das características das bacias hidrográficas do Semiárido, e da consideração de que os grupos humanos se assentam, em grande parcela, no meio rural e vivem da agropecuária tradicional.
Democratizar o acesso e uso da água direciona-se ideologicamente à desconstrução da apropriação sócio-política desse recurso, bem como superar um quadro de iniquidade social ainda vigente: A parcela da população mais afetada é a faixa de 0 a 17 anos; 42,12% da população não tem rede geral e esse percentual aumenta no meio rural para 75% da população, sem acesso direto à água, pois não tem poço ou nascente na propriedade (GOMES FILHO, 2003)3.
O P1MC é desenvolvido no contexto das ações de mobilização comunitária, reeditando o mutirão, uma prática tradicional de cooperação entre os agricultores familiares; forte investimento na capacitação técnica, ofertando cursos de manejo com a água da cisterna e fortalecer o controle da sociedade civil nas ações sustentáveis para o conjunto de municípios e centenas de comunidades rurais dos Estados do Semiárido. Com sua metodologia participativa, já são mais de 624 reuniões microrregionais envolvendo 19.553 participantes; 273.104 famílias capacitadas; 6.397 comissões municipais também capacitadas, além de multiplicadores em GRH, gerentes administrativos, construtores de bombas manuais etc(ASABRASIL, 2010)4. A gestão do P1MC vai desde a escala local, com as organizações de base, até a escala nacional, com a atuação da Coordenação Executiva da ASA.
Carvalho (2010)5 identificou algumas mudanças na cotidianeidade das famílias rurais com a presença da cisterna na suas vidas, de ordem material e subjetiva, em especial, em relação à vida da mulher sertaneja: Elas têm sido impactadas positivamente, pois as cisternas as libertam de uma tarefa árdua para suas vidas, e com tempo mais livre, dedicam-se à aprendizagem de outras tarefas, a se inserirem em atividades sócio-produtivas comunitárias, bem como, se qualificarem, participarem de intercâmbios de trocas de conhecimentos, tornarem-se lideres comunitárias etc. Na vida dos homens, esses adquirem novas profissões no rural, como tornar-se um pedreiro executor ou capacitador do P1MC. No geral, as cisternas mudam a vida de toda família, que passa a desenvolver atividades de ampliação de renda em projetos sócio-produtivos agregando o valor social aos produtos territorializados beneficiados por essas famílias (doces, geléias, polpas de frutas nativas da Caatinga, biscoitos etc).
A ‘cultura da convivência’ que se forma em torno da relação interativa natureza e cultura, cujos processos educativos contextualizados abrem-se as possibilidades para emergir outra/nova linguagem de mundo, e no qual, os sujeitos podem perceber e reconhecer sua existência, reorientarem suas atitudes para o uso ecocentrado dos recursos naturais, com respeito e sem levá-los à exaustão; uma articulação do saber popular com o saber sistematizado/técnico/acadêmico, criando novas oportunidades para que os sujeitos aprendam/reaprendam habilidades pelo uso e manejo das tecnologias sociais voltadas para a criação, produção e organização comunitária a partir das demandas e potencialidades existentes. E funda a lógica ‘do guardar’ a água. Como retrata um trecho da música “Água de Chuva” (MALVEZZI, 2008)6: “Colher a água, reter a água, guardar a água quando a chuva cai do céu. Guardar em casa, também no chão e ter a água se vier à precisão”.
A cisterna é hoje, responsável pela elaboração de novos comportamentos, novas cotidianeidades e novas territorialidades no sertão semiárido. A água da chuva, agora, disposta ao lado das casas é uma água valorizada pelo sertanejo, pois este diz: “Uma água abençoada e guardada para beber”.
Certo que o P1MC ainda não equacionou as demandas de água potável para as populações rurais do Semiárido, mas se coloca como um Programa que atua diretamente na situação de necessidade e vulnerabilidade dessas populações. No entanto, ele se desenvolve dentro de um campo conflituoso, pois há diferentes modelos de desenvolvimento em disputa no Semiárido. A água, a terra e a biodiversidade da Caatinga disponíveis, mais do que nunca, são territórios visados para a apropriação capitalista. Tais embates colocam os sertanejos em posição de luta em defesa desses territórios, considerados pelos mesmos como suportes para sua produção material e simbólico-cultural no mundo.
Enquanto Programa, o P1MC é dependente do interesse das gestões públicas manterem ou não seu apoio. Tal aspecto repercute na atual gestão federal, ao cancelar seu apoio à ASA para sua continuidade, repassando para a responsabilidade das gestões públicas estaduais a construção das cisternas. Isso coloca em dúvida todo o processo de articulação e de mobilização em rede proposta pela ASA.
Muito mais do que se pensa ser o P1MC uma ação pontual e emergencial, ele é uma ação transformadora e desencadeante de novas demandas e movimentos para que o acesso e o uso democrático da água passem a ser postos em prática como políticas públicas contextuais, no Semiárido e outros territórios, marcados pela exclusão e desconsideração sóciopolitica.
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1 DE MARCO, Giovanna. Água e processos subjetivos. 2003. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica). Pontifica Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2003
2 ASABRASIL. Conhecendo o Semiárido: aspectos da proposta política de convivência com o semiárido. Recife (PE): ASABRASIL, 2005.
3 GOMES FILHO, José Farias. Crianças e Adolescentes no Semiárido Brasileiro. Recife/PE: UNICEF, 2003
4 ASABRASIL. ARTICULAÇÃO NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO. Construindo futuro e cidadania no semiárido. Publicação comemorativa 10 anos ASA. Recife (PE): ASABRASIL, 2010
5 CARVALHO, Luzineide Dourado. Ressignificação e Reapropriação Social da Natureza: Práticas e Programas de ‘Convivência com o Semiárido’ no Território de Juazeiro (Bahia). 2010. Tese (Doutorado em Geografia). Universidade Federal de Sergipe. Núcleo de Pós-Graduação em Geografia/NPGEO. São Cristóvão, Sergipe, 2010.
6 MALVEZZI, Roberto. Água de Chuva. Intérprete: Nilton Freitas, Roberto Malvezzi, Targino Gondim.In: Belo Sertão: a convivência com o semi-árido através da música:Compact disc digital áudio, 2008. CD. Faixa 03
Drª em Geografia -UNEB/DCH III/NEPEC-SAB | luzidourado@hotmail.com